quinta-feira, setembro 13, 2007

a casa da minha avó


















A casa da minha avó sempre foi o ponto de centralidade de toda a família. Desde que ela morreu, há onze anos, que continua ali, intacta mas frágil, como um marco de tempos idos, que nos habituámos a ter por perto. Antigamente, em Setembro – mês por excelência de encontro e reunião familiar – que a pequena casa onde a minha mãe nasceu e onde os seus cinco irmãos foram criados, se enchia de gente, filhos, netos, primos, genros, cunhados e cunhadas, tornando-se demasiado apertada e pequena para uma família demasiado grande.
Quando entramos, somos invadidos pelo cheiro a mofo, pelos tectos baixos, pelo quarto interior, sem luz e com o velho candeeiro a petróleo sob a mesa de cabeceira, pelo chão que range a cada passo, pelas fotos, muitas fotos, que permanecem nas mesmas prateleiras, pontos acumuladores de pó ancestral que deixam vislumbrar embaciadas imagens nossas, de infância vivida. Sempre gostei de entrar na casa da avó e ficar ali, a olhar para um enorme quadro de talha dourada cheio de fotos a preto e branco, onde via caras conhecidas, casamentos de tios que não presenciei, de bebés que já só conheci adultos. Depois perguntava: ‘Quem é este senhor mãe?’ ‘Era um tio de Sintra’, respondia-me ela, e eu ficava ali, a digerir a surpresa de tamanha novidade, incrédula por só agora saber que os laços familiares tinham chegado às imediações de Lisboa. Habituei-me desde muito nova a ter a presença da família mais directa e chegada por perto. Apesar de filha única, este convívio familiar foi importante para a minha formação. As minhas primas eram as minhas companheiras inseparáveis, talvez isso explique o facto de, hoje em dia, ser madrinha da filha de uma delas.
Quando éramos miúdas e em Domingo de festa, a avó sentáva-nos na mesa redonda da entrada para almoçarmos juntas o tradicional cozido à portuguesa e ali ficávamos, em grande algazarra, enquanto os adultos comiam na mesa rectangular da cozinha com o tampo forrado a plástico, onde se sentavam umas quinze pessoas. A casa era pequena, mas transbordava de amor. Não importava mais nada, havia calor, comida e alegria e isso enchia as nossas pequenas almas.
A avó era devota. Muito. Por isso, em dia de procissão e Domingo de missa, a toalha de crochêt branco e imaculado que se colocava sob o altar da igreja, era dela. Ainda hoje lá permanece como sinal da sua presença e dedicação. Depois seguia-se a procissão, onde na sala da eucaristia da igreja, nos vestíamos de branco com asas de anjo e nos sentíamos vaidosas pela indumentária. Ainda hoje gosto de rever as fotos desses tempos. Tenho uma favorita, aquela em que estamos as quatro primas, pequenas e vestidas de branco, encostadas a um velho Ford em frente à garagem da minha tia Madalena.
A porta da sua casa estava sempre aberta adornada pela velha árvore de flores lilazes que lhe embeleza o rosto e lhe dá um ar romântico. Não havia nada que despertasse o interesse alheio para roubar o que quer que seja. Era casa de gente pobre, cujos maiores tesouros eram as imagens de santos no quarto e o fio de ouro que lhe acompanhava o decote com a imagem de Jesus crucificado. A cortina branca esvoaçante, a chave do lado de fora, eram sinais de presença. Entráva-se por aí adentro e gritáva-se ‘ó da casa’, sem medos nem vergonhas, habituádos que estamos àquela sensação de pertença.
Em dias de festa como agora, em que a avó já lá não está, em que as primas estão crescidas, casadas, com filhos, em que os tios que nos habituámos a ter desde sempre se separaram, seguiram outras vidas, outros rumos, a porta da velhinha casa continua a estar aberta, com a mesma cortina branca esvoaçante, invocando os momentos de outros tempos.
A diferença é que já lá ninguém entra.

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