quinta-feira, abril 27, 2017

Quando a vida te mostra que tens tanto pelo qual agradecer


Estive quatro dias sozinha sem a minha malta. No feriado, dia em que regressavam a casa, decidi ir comprar flores para colocar nas jarras lá de casa e dar-lhe cor e alegria. Afinal, era 25 de Abril e impunha-se flores para festejar o dia. Saí de casa e fui a uma florista que sei ter sempre ramos fantásticos a pouco mais de 3 euros e já devidamente preparados. Era desses que eu queria nas jarras lá de casa. Cheguei, vi um que me agradou, peguei nele e coloquei-o sobre o balcão. Do outro lado uma rapariga aparentemente nova tentava, com dificuldade, embrulhar o pé do ramo com um pouco de papel. Estava sozinha na loja. Reparei que tinha a mão atrofiada e movia-se com dificuldade, pelo que me ofereci logo para embrulhar o ramo, uma vez que ela se debatia para o fazer. 
Foi então que face à minha atitude, ela se sentiu na obrigação de se justificar e me contou que estava assim desde que tinha tido um AVC, com 35 anos. Confesso que o meu peito gelou perante a história dela e soaram campainhas de alerta por todo o lado, como que a dizer: "Estás a ver? estás a ver? Cuida-te! Quem te avisa amigo é!". É que há vários meses que me queixo com dores de cabeça fortes, tenho problemas de circulação, a minha vista direita insiste em estar constantemente a tremelicar e levo uma vida com bastante stress diário por motivos profissionais. Já várias vezes pensei que tenho de abrandar o ritmo ou corro o risco de algo me acontecer. Por isso, quando ela decidiu desabafar comigo o que lhe aconteceu, gelei, foi como se o universo me tivesse dado uma mostra do que me pode acontecer. 
Hoje, passados 3 anos - atualmente ela tem a minha idade - 38 anos, move-se com dificuldade mas já consegue andar, fala ainda com a voz um pouco embargada, mas já consegue falar, perdeu a visão periférica do lado esquerdo - o que a faz perder o equilíbrio frequentemente - e deixou de conduzir, não porque não possa, mas porque "não quero colocar a vida de outros em perigo", segundo palavras da própria, "e o que eu adorava conduzir", desabafa com saudades. Apenas aquele lado esquerdo continua apanhado, o braço e a mão atrofiados, dificultando-lhe os movimentos. "Tive 7 paragens cardio-respiratórias enquanto esperava pelo INEM, a minha sorte foi isto ter acontecido aqui na loja, a minha mãe chamou logo a assistência, porque se tivesse sido em casa, sozinha, porque vivia sozinha, tinha morrido." Eu ia ouvindo a história dela e sentindo-me pequenina, pequenina e abençoada, tão abençoada a cada palavra, a cada nova informação que ela se decidia a partilhar comigo. Após o AVC e duas semanas em coma no hospital, esteve ainda 8 meses em Alcoitão a fazer reabilitação e fisioterapia, iniciando o longo processo de reaprender as coisas mais básicas da vida: a andar, a falar, a comer sozinha, a recuperar uma vida virada do avesso. "Agora vivo com a minha mãe e o meu irmão mais novo, ele é um pouco mandão e assumiu a figura do homem da casa, pois tínhamos perdido o nosso pai há pouco tempo... e nós nem sempre nos damos bem, mas é ele quem cuida de mim."
Senti, naquele desabafo, naquela breve conversa que tivemos - enquanto estávamos as duas na loja, sozinhas - que aquela mulher que tinha à minha frente, da minha idade, se sentia profundamente sozinha. Não tinha marido, nem filhos e, queixou-se, os amigos tinham-lhe virado as costas (tão típico). Não pude deixar de tomar as dores dela também como minhas. De me colocar na pele dela - mais não fosse porque somos da mesma idade - e pensar que é do caraças estas situações, estes episódios que deixam a vida de pernas para o ar... de que estamos muito bem na nossa rotina de queixumes do dia-a-dia, onde nos vamos lamentando a amiúde, ou é o puto que não nos deixou dormir, do colega do trabalho que nos deu uma resposta torta, do marido que acordou mal disposto, do vizinho de cima que arrasta móveis e faz barulho, do condutor da frente que vai a 20 kms/hora, disto e daquilo e de repente, esquecemo-nos disto, do essencial. E de como - sim, já sei que é cliché o que vou dizer - a vida muda num segundo.
É do caraças.
Desde terça-feira que penso muito naquela rapariga da minha idade que, de repente, está dependente do irmão mais novo e da mãe para a ampararem e de como, aos 38 anos, teve de reaprender a viver. Um dia de cada vez.
Antes de sair da loja disse-me: "Tenha cuidado, lembre-se que tem duas crianças pequenas, cuide de si! E vá passando e dando notícias... eu estou por aqui."

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