O tão aguardado dia da consulta chegou, mas não surtiu o efeito esperado, se é que esperava algum efeito. Depois do final do dia de ontem, o princípio do dia de hoje deixou-me insegura e vulnerável, com todas as emoções à flor da pele. Sentia-me emocional, incapaz. Cheguei ao hospital às 9h30 e assustei-me com o mar de gente que tinha acordado mais cedo do que eu e aguardava naquela sala de espera velha e angustiante. Fui atendida por um rapaz simpático que de repente, pediu ajuda à colega do lado, e acabou por ser rebaixado à frente de toda a gente. Tinha ar de cabra, não gostei do aspecto dela. Não o ajudou. Ele abanou a cabeça e desabafou entre dentes, depois olhou-me nos olhos à procura de uma expressão de solidariedade, deu-me um sorriso de conforto e pediu-me desculpa. Era simpático ele. Nem o nome lhe soube.
Aparentemente os serviços do hospital enganaram-se ao marcar a minha consulta e atribuiram-me o médico errado. Depois de uma enorme confusão, onde queriam aterar a data da consulta e adiá-la para daqui a duas semanas - a qual eu recusei - e nem mesmo após muita insistência minha em lhes fazer reconhecer que o erro tinha sido deles e demonstrar o transtorno que me causavam - esperei mais de 3 meses pela consulta, tive de faltar ao trabalho, etc. - fui atendida por um médico que sofria do síndroma da altivez e arrogância clínica, que me subjugou assim que entrei no seu gabinete. Relativizou tudo o que disse, riu-se quando lhe falei no nome da médica que me reencaminhou para aquele hospital e mandou-me despir, quase confiante de que aquilo que eu tinha não passava de uma simples 'pele seca'. Respondi-lhe ásperamente. Sempre. Consigo ser muito dura quando quero. Demais até.
Ironizei quase com satisfação quando lhe disse que 'tenho mais do que uma simples pele seca' e ele, ainda não convicto das minhas palavras, continuou: 'dispa-se, dispa-se, já vamos ver isso'.
E viu. E calou.
Nesse momento quase que lhe consegui dissecar a expressão de surpresa no rosto, a forma como lhe foi difícil reagir e articular o discurso. Disse repetidas vezes para si próprio: 'isto não é ictiose vulgar, a menina não tem ictiose vulgar' e saiu disparado da sala, alarmado, não sem antes me dizer para eu não sair dali, enquanto ele corria a chamar os restantes médicos da ala de dermatologia. E vieram todos, como uma grande comitiva, olhar para mim semi-nua, em cima de uma maca, tal e qual uma cobaia.
Este tipo de situação já me ocorreu um par de vezes. Normalmente, quando sinto que alguém me olha fixamente, ou com expressão de ponto de interrogação, sei o que lhes atravessa a alma naquele instante. Geralmente não os censuro. O desconhecido sempre fascinou o seu humano. Eu própria sofro do mesmo male. Mas, para demonstrar de que sei perfeitamente o que lhe vai dentro das cabecinhas, naquele preciso instante, fixo bem a pessoa, encaro-a de frente e, tal como os leões, não sou eu a primeira a desviar o olhar. A outra pessoa acaba por fazê-lo, constrangida, intimidada. Isto acontece-me por vezes nas situações mais banais - na praia, no verão quando ando mais destapada, ou quando alguém começa a olhar bem para mim e a ver que afinal, as minhas mãos, ou os meus cotovelos, não são bem iguais aos seus. Mas os médicos conseguem ser bem mais cruéis. Fazem-no friamente, como se fossemos um trapo, ou melhor, um boneco articulado e conseguem tirar qualquer tipo de dignidade que consigamos manter naquele instante.
Uma vez, no Hospital de Santa Maria fui mostrada quase como objecto de análise e de estudo (retiro o 'quase', porque foi mesmo isso que se tratou), a uma turma de estagiárias que me olhavam com olhos de piedade e de comiseração. Lembro-me que me mandaram despir e que de repente, sem eu saber, entraram cerca de 30 raparigas de batas brancas e cadernos na mão, que tiravam notas e segredavam entre si à medida que eu, uma jovem mais nova do que elas, era mostrada de frente e de costas por uma médica que falava articuladamente mas sem qualquer tipo de afectividade no discurso. Nesse dia chorei desalmadamente. Lembro-me que me enfiei no metro e chorei. Chorei muito. O caminho todo. Saí do metro e chorei. Entrei em casa e chorei. Lembro-me de o meu pai saber do episódio e de dizer que vinha a Lisboa e lhes partia a boca toda. Lembro-me de me sentir protegida por ele.
Desde esse dia que tenho pânico de grandes e velhos hospitais públicos. Desde esse dia que sempre procurei ajuda nos privados. Hoje, naquele velho e grande hospital público que é o Curry Cabral, vista por todos aqueles médicos, em cuecas e sutiã, deitada em cima daquela maca, lembrei-me desse dia. E tal como há dez anos atrás, chorei muito. Muito mesmo. Mas mantive sempre a carapaça dura e, se há dez anos eu não consegui pronunciar uma palavra em minha defesa, actualmente as coisas não são assim. Mas mesmo dando uma de durona, quando me vejo livre daquele ambiente que me oprime, geralmente desabo.
Marcaram-me duas biópsias para o dia 29 de Outubro, tudo porque afinal, a doença que me acompanha há quase 29 anos e que sempre pensei tratar-se de ictiose vulgar, ao que parece é uma variante de Ictiose mais gravosa - Ictiose Hiperqueratose Epidermolítica - provavelmente ligada ao cromossoma X, o do sexo feminino, o que também poderá explicar o facto de eu e a minha mãe a termos. Se a biópsia comprovar este diagnóstico que me foi avançado hoje, talvez, mas mesmo só talvez e entrando no campo das probabilidades, poderei repetir o teste genético. Mas ainda é tudo muito novo e recente para falar sobre o assunto.
À tarde encontrei-me com uma amiga, pedi-lhe ajuda, liguei-lhe a dizer que precisava de desabafar e ela veio logo, disponível para me ouvir como o faz há longos anos. Falámos durante horas, ouvi conselhos, descomprimi, relaxei, para em seguida, enfiar-me no cabeleireiro e ter direito a um verdadeiro tratamento integral: pintei, fiz nuances, cortei e no fim estava linda e maravilhosa.
É realmente fantástico o poder que uma ida ao cabeleireiro faz à alma.
adenda: Hoje o dia também foi marcado pela avaria do nosso frigorífico. Realmente uma desgraça nunca vem só.