Era uma rapariga de ideias fixas. Pequena mas enérgica, nada escapava ao seu raciocínio rápido e certeiro. Durante o dia, corria desenfreadamente, dando liberdade à sua curiosidade quase felina, ao seu jeito natural de explorar o mundo que a rodeava. Gostava de sentir-se liberta, com o vento a bater-lhe na cara, os cabelos desgrenhados, as pernas expostas ao sentir dos elementos que, quase sempre, mostravam as mazelas física de uma natureza demasiado revolta, demasiado intensa. Via-se cristalinamente, como se numa gargalhada, transportasse retalhos fabulosos que, indefinidos, lhe saiam da garganta em forma de raios de luz, leves e soltos, bailando ao som da sua voz infantil. Possuía a doçura típica dos anos feitos da ingenuidade natural, o calor do sorriso exposto no olhar, transporto para o peito, aberto para a beleza dos dias que lhe corriam como o sangue nas veias. Era uma pequena menina feliz, de aspecto franzino mas de grandes e pronunciados olhos, não mais evidentes que a sua boca delicada e delineada, como um esboço de lápis de carvão, com leves toques fumados de ínfima irregularidade. Por detrás deste devaneio de pura beleza, escondia-se um apetite voraz que geralmente passava despercebido aos olhos de terceiros. O sabor do açúcar mascavado preenchia as suas delícias mais profundas, o motivo pelo qual todos os dias e sorrateiramente à noitinha, retirava da última prateleira do armário por cima do fogão, o pequeno e bojudo frasco de vidro onde, aquela areia dourada reluzia como ouro e, em sôfregas colheradas, a consumia à boca cheia, deixando apenas pequenas e furtivas migalhas pendentes sobre a bancada que denunciavam a sua presença. Quase sempre era apanhada. Não no momento, mas após a satisfação da gula, geralmente no dia seguinte, por uma mãe irritada que tentava a todo o custo não tornar a filha numa lontra faminta com apetite de predador. Ela escutava, indiferente, com olhos de pecadora e a língua fechada dentro da boca de porcelana, sentindo ainda os resquícios do açúcar a percorrerem-lhe o corpo.
Mas nada, nem o doce sabor amarelo, a fazia suspirar de tentação como a leve e proibida farinha láctea que a mãe raramente lhe dáva a provar. Esse manjar, requintado, quase profano, estava confinado a ocasiões especiais – que quase sempre – nunca estavam relacionadas com a sua pessoa. Nos breves momentos em que presenciava o cheiro, sentia que perdia o juízo, as forças fraquejavam, inebriada que ficava com semelhante odor, imaginando a riqueza da consistência, a mistura do leite quente com o toque molhado e macio daquela textura rugosa. A última vez que lhe sucedera semelhante episódio, foi quando receberam em sua casa, a visita tia Teresa e esta, acabada de ser mãe havia pouco mais de sete meses, levou consigo uma enorme caixa de farinha láctea que servia de alimento ao seu pequeno rebento chorão. Como o peito havia secado logo cedo, não restava outro remédio à tia Teresa, senão socorrer-se da sagrada farinha para alimentar o Manelinho como uma verdadeira e bem tratada criança merece: cheia de gordos refegos e pregas visíveis a olho nu, que encontravam contraste com a pele da barriga, macia e saliente, tal como um pequeno e estaladiço leitãozinho. A visita da tia Teresa durou dois dias, o espaço de um breve fim-de-semana, que para ela, lhe pareceu uma tortura maquiavélica, quando à hora da refeição, lhe presenteavam canja de galinha com massa e à sua frente, preparavam o repasto daquele minúsculo ser que ainda nem sabia dar valor ao verdadeiro néctar que lhe escorria garganta abaixo. Invejava-o. Queria voltar a ser pequenina para, só assim, poder desfrutar novamente daquele sabor celestial. Nada feito. Nunca, em situação alguma, a sua mãe e a sua tia, a deixaram sequer, aproximar-se do fumegante prato de papa, ou tão pouco, lamber o resto pendente da colher que, diariamente, ficava esquecida na pia e que ela, tentava desesperadamente esconder no bolso do bibe de padrão vichy azul escuro, que a mãe, em tempos, lhe tinha feito com restos de tecido de uma velha toalha.
A sorte pareceu mudar no final desses dois torturantes dias. A tia Teresa, agitada pelos inúmeros sacos e malas do Manelinho que tinha de transportar até à estação, arrumou tudo apressadamente, deixando a famigerada caixa de papa em cima da bancada da cozinha. Ela observava a tia e, entre si, rezava desesperada, para que a pressa se sobrepusesse ao esquecimento, fazendo com que o brilho metálico da embalagem da farinha láctea, acabasse por ficar ofuscado pelas fraldas, biberões e brinquedos do primo nas agitações próprias das partidas não programadas. Assim aconteceu, inundando-a da sensação triunfante que a vida nos revela nos pequenos momentos. Agora, podia calmamente delinear o seu plano e esperar, voltar a sentir, o prazer morno daquela desgustação quase imaginária.
Nos dias que se seguiram à partida da tia, tentou desesperadamente abrir a caixa metálica, que por ser nova e com pouco uso, possuía uma força anti-natura que exigia demasiado esforço do seu corpo lingrinhas e esgalgado. Todos os dias, à noitinha, passava horas a contemplá-la, esquecendo-se por completo do açúcar mascavado e imaginando o seu conteúdo, ou a forma como chuparia os dedos lambuzados, um por um, não desperdiçando nem uma única gota de leite. Tentou desesperadamente abri-la por todas as formas que conhecia. Socorreu-se das mãos, apertou-a, encaixou-a no corpo, debruçou-se sobre ela num verdadeiro esforço motriz, enquanto os seus pequenos e miúdos dedos a comprimiam e o rosto se contorcia numa expressão de dor. Nada feito. Imperceptível e inflexível, a caixa metálica continuava a deter a farinha láctea como um tesouro bem guardado só revelado a alguns merecedores.
Enlouquecida, farta, mas ainda não totalmente resignada, socorreu-se daquilo que de melhor tinha, o verdadeiro motivo de tamanha vontade, daquela gula sôfrega e ansiosa, daquele palpitar que já não conseguia controlar e, num acto de fúria quase animalesca, cravou a sua boca feita de traços vãs de artistas, na embalagem metálica que não acusou semelhante pressão.
Apenas os dentes se partiram, não aguentando a missão que os esperava.
Mas nada, nem o doce sabor amarelo, a fazia suspirar de tentação como a leve e proibida farinha láctea que a mãe raramente lhe dáva a provar. Esse manjar, requintado, quase profano, estava confinado a ocasiões especiais – que quase sempre – nunca estavam relacionadas com a sua pessoa. Nos breves momentos em que presenciava o cheiro, sentia que perdia o juízo, as forças fraquejavam, inebriada que ficava com semelhante odor, imaginando a riqueza da consistência, a mistura do leite quente com o toque molhado e macio daquela textura rugosa. A última vez que lhe sucedera semelhante episódio, foi quando receberam em sua casa, a visita tia Teresa e esta, acabada de ser mãe havia pouco mais de sete meses, levou consigo uma enorme caixa de farinha láctea que servia de alimento ao seu pequeno rebento chorão. Como o peito havia secado logo cedo, não restava outro remédio à tia Teresa, senão socorrer-se da sagrada farinha para alimentar o Manelinho como uma verdadeira e bem tratada criança merece: cheia de gordos refegos e pregas visíveis a olho nu, que encontravam contraste com a pele da barriga, macia e saliente, tal como um pequeno e estaladiço leitãozinho. A visita da tia Teresa durou dois dias, o espaço de um breve fim-de-semana, que para ela, lhe pareceu uma tortura maquiavélica, quando à hora da refeição, lhe presenteavam canja de galinha com massa e à sua frente, preparavam o repasto daquele minúsculo ser que ainda nem sabia dar valor ao verdadeiro néctar que lhe escorria garganta abaixo. Invejava-o. Queria voltar a ser pequenina para, só assim, poder desfrutar novamente daquele sabor celestial. Nada feito. Nunca, em situação alguma, a sua mãe e a sua tia, a deixaram sequer, aproximar-se do fumegante prato de papa, ou tão pouco, lamber o resto pendente da colher que, diariamente, ficava esquecida na pia e que ela, tentava desesperadamente esconder no bolso do bibe de padrão vichy azul escuro, que a mãe, em tempos, lhe tinha feito com restos de tecido de uma velha toalha.
A sorte pareceu mudar no final desses dois torturantes dias. A tia Teresa, agitada pelos inúmeros sacos e malas do Manelinho que tinha de transportar até à estação, arrumou tudo apressadamente, deixando a famigerada caixa de papa em cima da bancada da cozinha. Ela observava a tia e, entre si, rezava desesperada, para que a pressa se sobrepusesse ao esquecimento, fazendo com que o brilho metálico da embalagem da farinha láctea, acabasse por ficar ofuscado pelas fraldas, biberões e brinquedos do primo nas agitações próprias das partidas não programadas. Assim aconteceu, inundando-a da sensação triunfante que a vida nos revela nos pequenos momentos. Agora, podia calmamente delinear o seu plano e esperar, voltar a sentir, o prazer morno daquela desgustação quase imaginária.
Nos dias que se seguiram à partida da tia, tentou desesperadamente abrir a caixa metálica, que por ser nova e com pouco uso, possuía uma força anti-natura que exigia demasiado esforço do seu corpo lingrinhas e esgalgado. Todos os dias, à noitinha, passava horas a contemplá-la, esquecendo-se por completo do açúcar mascavado e imaginando o seu conteúdo, ou a forma como chuparia os dedos lambuzados, um por um, não desperdiçando nem uma única gota de leite. Tentou desesperadamente abri-la por todas as formas que conhecia. Socorreu-se das mãos, apertou-a, encaixou-a no corpo, debruçou-se sobre ela num verdadeiro esforço motriz, enquanto os seus pequenos e miúdos dedos a comprimiam e o rosto se contorcia numa expressão de dor. Nada feito. Imperceptível e inflexível, a caixa metálica continuava a deter a farinha láctea como um tesouro bem guardado só revelado a alguns merecedores.
Enlouquecida, farta, mas ainda não totalmente resignada, socorreu-se daquilo que de melhor tinha, o verdadeiro motivo de tamanha vontade, daquela gula sôfrega e ansiosa, daquele palpitar que já não conseguia controlar e, num acto de fúria quase animalesca, cravou a sua boca feita de traços vãs de artistas, na embalagem metálica que não acusou semelhante pressão.
Apenas os dentes se partiram, não aguentando a missão que os esperava.
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