segunda-feira, dezembro 28, 2009

o espírito do Natal passado...


É um conto, eu sei, mas achei que serviria perfeitamente para explicar o que me aconteceu na noite de 24 para 25 de Dezembro.

Sonhei com o meu avô paterno, que já morreu há 16 anos.
Nunca me tinha acontecido, sonhar com o meu avô, ainda para mais na noite de Natal.

O meu avô só tinha uma neta, eu. Para ele eu era a 'menina' e apesar de não ser uma pessoa que verbalizasse aquilo que sentia ou o manifestasse fisicamente através de beijos e abraços, sei que tinha um lugar mais do que especial no seu coração. O meu pai, seu filho, é igual. Não é à toa que têm o mesmo nome.
O meu avô era apicultor. Criava abelhas e bicharada, tinha patos, pavões e perus a deambular pelo quintal. Vendia no mercado da fruta nas Caldas e aquilo para mim era motivo de orgulho. Qual era a criança que se podia gabar de comer fios de pinhões todos os dias? Nenhuma que eu conhecesse. Por isso, sempre que ia visitar o meu avô à praça, toda eu rejubilava com aquela parafernália de coisas onde a vista se perdia e a alegria se multiplicava. Ora era a balança de pesos que nunca consegui entender como funcionava, ora eram os canários amarelinhos, presos nas gaiolas, que cantavam à desgarrada como se a felicidade estivesse ali prestes a sair-lhes dos bicos em forma de melodia, ora eram os frutos secos que eu penicava à socapa, as caixinhas de framboesas que ele me mandava para casa porque sabia que delas fazia batidos, a moeda que me passava para a mão, ou o simple nogat de caramelo e pinhão que me adoçava a boca e acalmava a gulodice.

Era assim que o meu avô me mimava. Não era por palavras, nem por gestos carinhosos. Para ele, o carinho traduzia-se assim, na preocupação das pequenas coisas em me fazer feliz. Por me mostrar os animais, por me pôr em contacto com a natureza das coisas, por me mostrar como a vida, para além da nossa, tem multiplicações de formas, cores e feitios e que todos sentem, todos têm uma função, um papel a desempenhar.

Quando o meu avô morreu eu tinha 15 anos. Andava aluada com as hormonas da adolescência e apanhou-me em plenas férias de verão em casa de uma tia durante as festas de S. Pedro. No meio de tamanha excitação que eram aqueles dias, em que os rapazes eram a minha única preocupação, o meu avô decide morrer, assim, sem pré-aviso, sem dar sinais. Deitou-se bem de noite, já não acordou de manhã. O meu pai, seu único filho, ligou à hora do almoço para casa dos meus tios e disse-me que tinha de regressar.

'Porquê?' - perguntei eu contrariada - 'Porque o avô morreu' - disse do outro lado e desatou num pranto.

Foi a primeira e única vez que vi/ouvi o meu pai chorar.

Eu não chorei. Não chorei nada, nem uma lágrima verti. Lembro-me que a sensação que predominou em mim foi o aborrecimento por ter de me ir embora, por deixar aquele ambiente de festa, de carrinhos de choque, de primeiros beijos escondidos na calada da noite, para me enfiar em casa para chorar uma morte, - algo com o qual eu nunca tinha tido contacto na vida - e onde as lágrimas e a tristeza predominavam.

Fui contrariada, mas fui. Os meus tios enfiaram-me no carro deles e juntos fizemos a viagem de regresso, tendo os mesmos permanecido para assistir ao funeral.

Lembro-me também que não me vesti de preto e que choquei umas tias por levar uma camisa aos quadrados azuis e brancos com umas aplicações vermelhas em certas partes. (a moda na altura era terrível!)
'Qual é o problema?' - pensava eu - 'não estou aqui? não chega?' - e contrariando tudo e todos não a despi. Não bastava já cortarem-me as férias de verão na melhor parte, ainda queriam vestir-me? E, fazendo justiça à rebeldia típica destes anos, levei-a em jeito de afirmação.
Quando o funeral acabou implorei aos meus pais que me deixassem regressar com os meus tios. Eu queria era a feira, o voltar para o centro da alegria, para junto do rapaz que me interessava, o prolongamento da promessa de dias felizes. Queria lá saber de desgostos, de lágrimas vertidas, de mortes.
A minha mãe bracejava, revoltada que estava comigo.
' - Onde é que já se viu? O teu avô acabou de morrer e tu queres é festa? Nem pensar, nem pensar! Não vais nada, não vais nada! Ficas em casa' - e foi o meu pai, solidário com a minha juventude, com a inconsciência dos meus actos, com o facto de nem ter ficado abalada com a morte do meu próprio avô, que deu a palavra de ordem - 'Podes ir. É melhor ires mesmo.'
E foi assim, que eu, no dia em que o meu próprio avô foi a enterrar, regressei à feira de S. Pedro, às férias do Verão, aos rapazes e aos carrinhos de choque, ao ponto onde tinha deixado a minha diversão, para agir como se a morte do meu avô tivesse sido apenas um percalço no meio de tudo, algo sem importância.
Até hoje não me perdoo.
Hoje, com 31 anos, penso muitas vezes nisto.
Como fui capaz de fazer o que fiz? Como fui capaz de agir tão tolamente?
Devaneios da idade? Sim, é verdade, mas mesmo assim, a imaturidade foi tanta que não me consigo perdoar.
É por isso que, nesta noite de Natal, quando o meu avô me apareceu em sonhos pela primeira vez na vida, eu senti que ele, esteja onde estiver, me mandou uma mensagem, como se me dissesse: 'eu continuo aqui, eu gosto de ti'.
E se na altura não verti uma única lágrima, hoje, sempre que penso nisso, esvaio-me em água.









Desculpa.

2 comentários:

Seni disse...

:)
O meu avô paterno foi a pessoa que mais me custou ver partir! Tenho a certeza que é ele que me guia e que está sempre comigo.

Big kiss

Maffa disse...

15 anos, o que é isso?? täo novinha... é mais que normal... O ser humano tem mil e uma maneiras de fugir ao sofrimento, principalmente as criancas... e ainda bem. Aposto que o teu avô queria é que te divertissses. beijinhos