quarta-feira, dezembro 05, 2007

Conto III


















Joana brincava sozinha, rodeada pelas altas e alvas paredes da casa senhorial onde vivia. Tinha as bochechas rosadas, os cabelos louros cor de mel, apanhados em dois enormes carrapitos presos com laços de cetim bem no alto da cabeça, o vestido apertáva-lhe o peito sempre que se mexia. As amas recebiam ordens restritas de que a menina tinha de andar sempre imaculada e vigiavam-na constantemente, não fosse o vestido rasgar-se, ou os bordados ingleses do seu peitilho e baínhas ficarem negros pela sujidade. Não tinha ordens de brincar cá fora, no jardim, sem ser em cima de uma manta quadrada e de tecido ao xadrez onde espalhavam os seus brinquedos que saiam perfeitamente alinhados de uma enorme caixa forrada a linho e com um cheiro adocicado a alfazema e rosmaninho. Joaninha olhava as amas com indiferença. Pensava muitas vezes, secretamente, que um dia rebolaria os seus imaculados vestidos na parte mais lamaçenta do jardim. Aquela junto à pequena fonte com a estátua de Vénus bem ao centro, cheia de verdete e com um dedo da mão em falta, que com olhos de monja, olhava petrificada a envolvência em seu redor.
Idealizava muitas vezes como o faria, qual o momento mais oportuno para conseguir escapulir-se, ela e os seus pesados vestidos, para o meio das poças de água escura, num verdadeiro acto de provocação. Imaginava os salpicos enormes a cairem sobre o tecido branco pérola, os seus laços de cetim amarrotados e irremedíavelmente perdidos, as meias da mais fina renda de Viana rasgadas, as saias puxadas até acima, mostrando os culotes.
Apesar dos seus tenros sete anos, Joana sonhava em contestar as suas amas, em provocar uma verdadeira revolução na ordem restrita e pacata em que o seu mundo se desenrolava. Invejava as filhas dos caseiros, sempre tão soltas e tão libertas, correndo descalças pelo jardim, salpicando os pés na terra húmida e fresca, com os seus cabelos desalinhados, rosadas pelo vento, com os mesmos vestidos dia após dia. Odiáva-as secretamente, enquanto se divertiam penduradas nas árvores, enquanto comiam a fruta tenra que trincavam ferozmente sem os propósitos das meninas educadas, bebendo o sumo fresco que lhes escorria pela boca como se água fosse e limpando os lábios molhados à manga gastas e sujas. Nada as faria parar, todo o mundo era delas e no entanto, ela ali estava, cingida à sua manta quadrada com tecido ao xadrez, sem poder ir além de uns meros centímetros, vigiada por quadro monas de mármore que lhe seguiam os passos. Imaginava o dia em que cairiam todas, tumbando uma por uma, como se um sopro lhes tivesse retirado toda a força de viver e ela, a única que sobreviveria a tamanha proeza, descalçar-se-ia e puxando os vestidos que a oprimiam e apertavam, colocaria o pé fora da manta, sentindo a terra do jardim penetrar-lhe a pele, cheia de textura irregular e no entanto, suave, como uma carícia que chega devagar e que encontra o prazer da tentação proíbida.
Pensou em tudo isto, imaginou cada segundo, cada forma, cada passo que daria, cada salpico, cada nódoa, desejou secretamente, tanto que até o peito lhe doía da emoção, a respiração sustinha-se por breves momentos, sentiu um ligeiro corar por se permitir a tais pensamentos, lentamente acalmou-se e sentiu todo o corpo abrandar, como se tudo não tivesse passado de um louco devaneio impróprio para uma menina de sete anos. Foi então que uma chuva miudinha, irregular e indefinida que apareceu sem pré-aviso, se transformou num aguaceiro forte, compacto, duro como uma pedra, que rapidamente alagou todo o jardim, transformando a terra num repentino ribeiro de lama que alagou a manta de xadrez e a caixa de linho, sujando o vestido de bordado inglês e as meias de renda de Viana da Joaninha. Perante os gritos histéricos das amas, que tentavam apressadamente apanhar todos os brinquedos espalhados para dentro da caixa de cetim, Joaninha, permanecia estática e imovél como a estátua de Vénus. Apenas a denunciava um ligeiro sorriso de satisfação estampado no rosto.
Finalmente sujára-se.


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