‘Sempre que passo no Jardim das Amoreiras espreito a menina e não a acho, Deve ter-se casado: as raparigas deixam de brincar depois de se casarem, cai-lhes o mundo inteiro em cima com um marido a ler o jornal lá dentro. Na época em que fui criança o casamento eram maridos a lerem jornais, distantíssimos. Julgo que ainda é. Não há direito de tirar meninas de varandas e fechá-las em três assoalhadas a limparem, a limparem. Chegam do trabalho e limpam. Aos fins-de-semana limpam. Não tornam a saltar à corda nem a inventar futuros onde o trapezista do circo, a largar talco das palmas, voa com elas de trapézio em trapézio, sob um foco prateado, E depois tanta roupa para passar a ferro, um filho a bater com um carrinho na parede, a angústia do dinheiro que falta para a prestação do automóvel. Os trapezistas, esses, não pagam prestações, flutuam. Ao descerem do trapézio por uma corda, levantam os braços a sorrir e dirigem-se para a cortina aos saltinhos. Existirá uma única senhora casada que levante os braços a sorrir e se dirija para uma cortina aos saltinhos?’
António Lobo Antunes, ‘Crónica escrita sem querer’, in Visão
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